Psicopatologia-fenomenologicaA psiquiatria tem ciclos. Passamos por um ciclo biológico, que durou cerca de 30 anos. Talvez tenha sido o tempo em que a medicina mais se desenvolveu. Mas os ciclos biológicos se alternam com ciclos mais humanistas. A perspectiva fenomenológica é uma perspectiva humanista.

Da fenomenologia derivam várias clínicas fenomenológicas que investigam as condições de possibilidade existenciais. É uma ciência objetiva para a investigação da experiência subjetiva.

O paciente relata sua subjetividade, o clínico empatiza, e a partir dessas experiências tenta reconstruir a forma existencial.

Por exemplo, um depressivo melancólico, uma estrutura que estamos estudando e com a qual estamos desenvolvendo um grupo de atendimento clínico no CAISM da Santa Casa, ele vai perdendo força de vida, vai tendo um acréscimo de pensamentos do passado, vai ficando aderido ao passado, com um acréscimo dessa dimensão temporal. Ele não elabora as condições de temporalidade.

A Psicopatologia Fenomenológica é usada para diagnosticar e a partir daí usar todo seu instrumental para reconstituir a forma existencial. Outro exemplo: uma mulher que se separou e estava cheia de culpa em relação aos filhos e muito aderida ao passado Ela mesma  não conseguia se expressar nesses termos. É o psicopatologista que tenta identificar as condições de temporalidade que estão atuantes.

A Psicopatologia Fenomenológica e suas diversas clínicas, na psiquiatria e na psicologia, investigam as condições de possibilidade das experiências conscientes. É a investigação daquilo que possibilita a experiência.

Continuando com o nosso exemplo do depressivo melancólico, temos alguém com grande ênfase no passado, com uma forte experiência de responsabilidade e irrevocabilidade. Essas condições temporais não estão dadas para o paciente. É o clínico que observa que o paciente só tem afetos de nostalgia, em geral matizados por culpa e excesso de responsabilidade, que seus pensamentos estão concentradamente relacionados ao passado, que seus sentimentos são de pesar em relação a experiências que já ocorreram e não voltam mais. Os melancólicos são muito aderidos ao dever e às regras da cultura.

Essa é a descrição subjetiva. Não é uma investigação subjetiva, é uma investigação que atravessa a experiência subjetiva para ver seus condicionantes, é uma ciência objetiva da investigação da subjetividade.

O trabalho clínico busca dar suporte ou promover a chance da personalidade se renovar. Para mim, a diferença entre a psiquiatria e a psicologia é de fachada, é uma diferença marcada por funções sociais diversas. Os psiquiatras ficam com o papel de conduzir a terapia farmacológica e os psicólogos ficam com o papel de fazer a psicoterapia. Mas, a rigor, os dois deveriam ter uma formação só. A busca é por reconstituir a forma existencial da pessoa, ou oferecer capacidade para que a existência continue a se desenvolver. Usando, por exemplo, alguns esquizoides, para os quais a proximidade machuca muito, temos o fato de que às vezes eles só conseguem conversar com um psiquiatra uma vez por mês. O tratamento tem que ser mesmo mais distante. E nós não sabemos denominar, pelas regras oficiais, se isso é psicoterapia ou psiquiatria.

Quando falamos de fenomenologia, falamos em geral de temporalidade, de espacialidade, de corporeidade. Ao pensarmos a doença, falamos de paralisação da existência ou de desproporção das condições de possibilidade da experiência. Mas, as clínicas fenomenológicas são muito diversas. E a própria fenomenologia é muito diversa. É melhor falar em fenomenologias. Quem se baseia em Heidegger tem uma visão. Quem se baseia em Sartre ou em Merleau-Ponty, por exemplo, tem outras proposições. A unidade entre as fenomenologias não é simples, às vezes, é só nominal.

Acredito numa fenomenologia empírica, que lida com a realidade de pessoas reais e necessitando de tratamento. Do contrário, ela pode virar uma filosofia de segunda mão, que não serve para ajudar o paciente.

Num extremo, temos a ciência positivista absoluta, que acha que tudo deve ser investigado só do ponto de vista fisiológico. No outro extremo, principalmente em tempos pós-modernos, temos a possibilidade de um abstracionismo total, podendo chegar à afirmação de que a doença não existe.

A fenomenologia empírica é uma atitude. Tento fazer uma obra empírica. É um estilo clássico de pensar a essência, mais próximo até da noção aristotélica, é uma ideia de formas que existem antropologicamente no real. Gosto de pensar as essências antropológicas encarnadas na experiência, para usar uma expressão de Binswanger.

Meu grupo é de fenomenologia estrutural e para nós, Minkowski e Binswanger são autores muito importantes.Temos feito, por exemplo, um trabalho na Cracolândia. Fomos chamados para tentar entender do que essas pessoas precisam, que modelo para psicose pode servir nessa situação. Então, estamos tentando entender onde essas pessoas estão, o que elas estão vivendo e porque não conseguem sair disso. Sabemos que não basta dar hotel, esse é um apoio inicial.

Sabemos que por meio do crack essas pessoas podem ter um pertencimento e mesmo uma identidade e que a saída disso não é simples. Trata-se de proporcionar a elas uma estrutura com firmeza, sem que a firmeza seja o ponto final, mas uma estratégia para se atingir um outro estado.

Sabemos que as igrejas neo-pentecostais têm feito isso em suas comunidades terapêuticas bastante hierarquizadas.Nós entendemos a necessidade da estrutura e da firmeza, mas não queremos derivar para o conservadorismo. Nossa busca é por uma estratégia que possa oferecer coesão para a existência dessas pessoas.Enfim, a prática fenomenológica existe e está presente na psicologia e na psiquiatria.

Eu sou um psiquiatra fenomenológico, entendo as questões que chegam até mim por esse ponto de vista. Sou favorável ao uso de medicação para dar suporte ou promover a possibilidade da personalidade se renovar, entendo que a paralisação da existência ou a desproporção das condições de possibilidade da experiência podem ser beneficiadas com a psicoterapia e também com a medicação.

Entrevista concedida em maio de 2015 à Claudia Garcia da Silva e Fabiane Alves Cardoso, psicólogas, alunas do Curso de Especialização em Psicopatologia e Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública da USP, por ocasião do seminário de Psicopatologia Fenomenológica, apresentado na disciplina História da Psicopatologia ministrada pela Prof.ª Maria Lúcia Calderoni.